
Publicado em:
18/1/2020
Bill Gates, a vírgula e a década que começa agora

João Pedro Paes Leme
Na estante virtual da Netflix encontra-se de tudo. E foi um alento ver o documentário de três episódios sobre a vida de Bill Gates. O homem que parece viver sempre 25 anos à frente do seu tempo dá uma demonstração de desapego e generosidade que o mundo devia observar com carinho. Mas não vou dar spoiler da série. Isso é tão irritante quanto sofrer bullying pela incompetência do seu time que apanhou feio no fim de semana. Em vez de descrever o que Bill Gates tem feito pelo futuro da Humanidade, tão bem contado no documentário, volto ao passado para lembrar uma frase que reforça sua genialidade. Em 1996, ele declarou: “Content is king” (“O conteúdo é rei”; ou “o conteúdo reina”, numa tradução mais adaptada). As pessoas que me conhecem sabem que esta frase é um dos meus guias há duas décadas. Uso e abuso da sua citação.
Quando resolvi empreender, em 2016, depois de 24 anos trabalhando na indústria de comunicação, estava claro para mim que Bill Gates continuaria como meu mentor indireto. Afinal, quanto mais plataformas de comunicação surgem, mais importante o conteúdo se torna para que as narrativas tenham sucesso. “Narrativa” e “storytelling” querem dizer absolutamente a mesma coisa no contexto da comunicação. São palavras que às vezes surgem na boca de pessoas despreparadas para tornar seu discurso um pouco mais, digamos, charmoso. Mas não se iluda. Muita gente enfeita o que diz apenas para não se afogar no seu próprio vazio existencial. É um cuidado para clientes e investidores porque, hoje em dia, boa narrativa e bom conteúdo são duas poderosas variáveis, principalmente se manipuladas (no bom sentido) por quem saiba fazer bem essa alquimia. Forma e conteúdo são complementares no processo de comunicação – e praticamente indissociáveis para convencer alguém de alguma coisa. Não me desligo desse binômio por nada.
Como estamos no auge da revolução mais incrível relacionada à comunicação humana, sempre que me perguntam o que faz a Play9, empresa de gestão de conteúdo da qual sou sócio fundador, minha resposta é simples: “Nós somos uma vírgula”. A vírgula, na narrativa, permite melhorar a história contada, mudar os rumos com um pequeno “porém”, criar explicações mais detalhadas, descomplicar frases confusas, ajudar na compreensão do texto. Enfim, ser uma vírgula é permitir a mudança sem medo de saber o que vem depois. A vírgula é a beira do precipício. Mas o precipício nunca foi um problema para quem sabe construir pontes acreditando que haja algo do outro lado. Mesmo quando as nuvens impedem a visão completa da maioria. Diante da vírgula existencial (ou mesmo gramatical), há três movimentos possíveis, assim como diante do precipício: recuar, jogar-se lá embaixo em desespero, ou continuar a estrada construindo a tal ponte. Mesmo sem saber exatamente quantos quilômetros terá, porque já se sabe o mais importante: o que está do outro lado.
Poucas vezes comecei um ano com tanto ânimo profissional. Claro que o sucesso da empresa ajuda. É estimulante ver suas convicções darem resultado, principalmente quando elas desafiam o óbvio e antecipam cenários. É apaixonante ser uma vírgula. Mas há razões concretas também; não apenas filosóficas. O mercado publicitário brasileiro entrou de cabeça no digital, ano passado, crescendo em 50,9% de 2018 para 2019. Em números absolutos, saiu de R$ 1,1bi para R$ 1,66bi – valores que hoje representam 20,2% de tudo o que é anunciado no Brasil. Esses dados são do Cenp (Conselho Executivo de Normas Padrão), entidade que reúne principais anunciantes, agências e veículos de comunicação. Mas os números devem ser ainda maiores porque pequenas e médias empresas não estão computadas aí. E são essas que vêm transferindo radicalmente seus orçamentos de marketing e mídia dos meios tradicionais para os novos meios de comunicação. Ou seja, o índice real passa da casa dos 20,2%. É incrível que a nova década comece assim. E de pensar que no início da década passada, em 2010, o Facebook tinha 6 anos, o Youtube tinha 5 e o Instagram acabava de nascer.
Em períodos de grandes mudanças, como o que vivemos na comunicação atual, você agradece imensamente o estímulo que seus pais lhe deram para leitura. E percebe o quanto valeu a pena entender e estudar a fundo a História da Humanidade. Ciclos começam a se repetir e é fundamental ter discernimento para saber quando um deles chegou ao fim e o outro está em expansão. É um movimento tão bonito de se compreender quanto devem ser aqueles gráficos da bolsa paras os experts do mercado financeiro. Olhar e compreender as transformações de um mercado é tão animador, mas tão animador, que você compara à paixão dos grandes navegadores quando entravam em suas caravelas em busca do desconhecido. De tanta convicção, eles soltavam suas velas e sabiam que as descobertas seriam incríveis. Nesse aspecto, o precipício, o oceano dos séculos XV e XVI, o espaço sideral e a vírgula da comunicação contemporânea representam o mesmo movimento. Um ato de coragem e convicção diante de um universo de infinitas possibilidades.
Bill Gates, provavelmente um dos maiores gênios vivos (senão o maior), talvez tenha tanta convicção dessas múltiplas possibilidades que preferiu escolher uma das imagens mais caretas possíveis para a capa do seu livro “A estrada para o futuro”. A imagem é muito simbólica. Ele diante de uma trilha asfaltada que parece levar ao infinito. O livro é de 1996, mesmo ano da frase “Content is king”. Está ali homem genial de 38 anos, na época, exatos 20 anos depois de ter abandonado a faculdade de Harvard para lançar a Microsoft. Muito à frente do seu tempo, apostou em tecnologia, mas sempre fez questão falar em “tecnologia da comunicação”. Meu sonho não é criar a nova Microsoft, nem ouso me comparar ao Bill Gates. Quero, isso sim, construir e reforçar o papel da Play9 como uma empresa media tech. E quando observo o cenário imparcialmente, de uma forma conjuntural, fico feliz por dois motivos: valeu a pena acreditar no poder do conteúdo e do storytelling desde o início da minha carreira, e vale mais a pena ainda olhar a minha empresa como uma eterna vírgula e nunca como um ponto final.