
Publicado em:
31/7/2019
O Rei Leão e a saga do empreendedor

João Pedro Paes Leme
Fui ver O Rei Leão despretensiosamente, mas saí surpreso e feliz. Como se uma centelha reacendesse pequenas porções de mim. Uma noite de terça-feira do imperceptível inverno carioca, uma sala de cinema não muito cheia e eis que, do singelo filme da Disney, surge uma digressão sobre o mundo empresarial.
Há algum tempo tenho pensado em não ser mais apenas voyeur no LinkedIn. Acho que é uma rede social que amadureceu para se tornar o que sempre se propôs a ser: o ponto de encontro de experiências profissionais relevantes, que apontem caminhos ou despertem reflexões. Isso foi claramente resultado da evolução da própria plataforma e da percepção de uma comunidade inteira que circula por ali. O filme e essa minha inquietação diante do LinkedIn fomentaram a vontade de escrever meu primeiro texto na plataforma. Para alguém que passou a vida escrevendo (livros, projetos, reportagens, artigos e produtos de conteúdo audiovisual dos mais variados) é curioso que tenha demorado tanto. Talvez faltasse o estímulo de algo tão inusitado quanto um filme da Disney.
O Rei Leão é um primor em termos de animação 3D, mas há muito mais do que sua qualidade técnica. Na telona está a essência da mitologia que definiu os traços da nossa cultura ocidental. Um pouco de Grécia antiga e muito de Inglaterra, porque é Shakespeareano acima de tudo. Não há nada mais real do que os conflitos reproduzidos no reino daqueles leões – e seus dilemas incrivelmente humanos. Existe um Mufasa em muitos de nós e alguns Scars espalhados por aí. A existência nos levará a distinguir uns dos outros, e o mundo empresarial também.
Aos 50 anos, ali na cadeira do cinema, fiz um pequeno retrospecto da minha vida profissional enquanto as imagens e diálogos passavam na tela. São 25 anos dedicados à comunicação, numa jornada que foi do analógico para o digital ao longo dessas duas décadas. Correspondente internacional duas vezes (em Londres e Paris); diretor de conteúdo da Globo, a maior empresa de mídia da América Latina; prêmios nacionais e internacionais; coberturas antológicas; oito Olimpíadas; cinco Copas do Mundo; entrevistas com presidentes da república, com celebridades e com cidadãos “comuns” com histórias maravilhosas. Depois, a coragem para pedir demissão no auge da carreira, abrir empresas de conteúdo digital, ajudar a repaginar o mercado, montando ou gerindo alguns dos maiores canais de YouTube do mundo. Enfim, posso considerar uma carreira vitoriosa. Mas a maturidade é boa companheira para não deixar que o sucesso suba à cabeça. E a trama na tela só me deixava mais convicto disso. Assim como reforçava também, na minha concepção, a imagem de um confronto bem atual: o da gestão baseada na generosidade versus a gestão tacanha baseada no “vale-tudo” e na falta de escrúpulos. Definitivamente, O Rei Leão passava naquele momento, lá pela metade do filme, a ter para mim uma linha narrativa mais profunda e paralela.
Depois de 20 anos numa corporação incrível como a Globo, que baseia suas convicções em uma cultura bastante sólida, mergulhei com tudo no mundo do empreendedorismo. Isso aconteceu há praticamente três anos. Virar empresário talvez tenha sido (e continue sendo) a experiência mais intensa da minha vida profissional. Não trocaria por nada essa mudança de ciclo, mas é impossível evitar a analogia do mundo empresarial com a selva que os roteiristas da Disney levaram para o cinema, desta vez de forma muito mais visceral e enigmática do que na época do desenho animado. Os personagens agora apaixonam ou amedrontam num contraste mais evidente. Alguns passam por cima de qualquer princípio ético para conseguir seus objetivos; outros mascaram suas reais intenções para dar o bote certeiro quando surge um momento de instabilidade do oponente. Enquanto isso, a busca pela correção e pela ética soa um tanto inocente e quase irresponsável de tão juvenil. É como o filme se desenvolve: a agressividade e a vilania de um lado, a generosidade da mente sonhadora do outro. Não parece muito distante do cenário de competição no mundo dos empreendedores. Mas também não traz um maniqueísmo tolo. É apenas um jeito de despertar nossa reflexão para aquilo que passa muitas vezes despercebido no dia a dia.
Ao longo da trajetória que me trouxe até aqui, encontrei personagens incríveis, inspiradores e até líricos, mas também não escapei de vilões e hienas que cruzaram meu caminho. Curioso é que tentam se esconder em pele de cordeiro. E mais curioso ainda é que de três anos para cá, como empreendedor, longe da blindagem de uma grande corporação, eu conheci sem filtro a essência de alguns desses seres humanos. Quem sabe pudesse analisar personagens, buscar suas características marcantes, arrancar suas máscaras... Meio século de experiência, porém, serve para você entender que é muito mais proveitoso e animador projetar o próximo meio século do que remoer o ataque dessas hienas que rondaram sua vida e sugaram a sua energia. Como Simba, o melhor é enfrentar os fantasmas, destruir com inteligência e coragem o ícone do vilão imaginário e entender que as hienas são, na verdade, massa de manobra. Por trás delas, há certamente um mestre sorrateiro à espreita para tirar alguma vantagem. Sempre. Suas armas obscuras são a mentira, a maledicência e a intriga.
Mas a antítese desses personagens macabros gera muito mais alegria para um empreendedor. Porque é na alegria que reside a sensação maravilhosa de querer acordar mais um dia para fazer projetos incríveis. Pouco importa se metade deles vai para a lata de lixo. Pior mesmo é descartar o ímpeto com medo de errar. Por isso vale sempre se aproximar de pessoas que te façam crescer, que acreditem nas suas ideias ou as confrontem com sabedoria, que sonhem junto com você e não vivam na mesquinharia de contar os galões de combustível enquanto o foguete está em plena decolagem. Trabalho bom se aproxima de diversão e de risco. E para apostar nisso, só líderes generosos vão prosperar no próximo ciclo. Em 2017, um estudo publicado na revista Nature separou dois grupos de pessoas: um para gastar dinheiro com elas mesmas e o segundo para gastar dinheiro com os outros. Era uma forma de medir a generosidade em impulsos elétricos do cérebro e também em reações químicas. O mecanismo cerebral ligado à felicidade, no segundo grupo, foi muito mais ativado. Ou seja, pessoas generosas são mais felizes e geram mais felicidade ao seu redor. É a diferença entre Mufasa, o rei pródigo e protetor, e seu irmão Scar, o perverso lacaio, que se aliou às hienas para matar Mufasa, tomar o trono e expulsar o sobrinho Simba, natural sucessor do pai.
É Shakespeare na veia. É a vida de empresário na veia. É a vida na veia. A generosidade e a perversidade, muitas vezes, habitam a mesma empresa. Talvez o grande aprendizado de 50 anos – e esse vigoroso MBA dos últimos três – seja entender como criar um antídoto. Não importa se ele for tão doloroso quanto abandonar aquilo que você mesmo criou com as próprias mãos. Não importa se alguns estelionatários de ideias usurparem as suas e venderem como deles no mercado. Num momento a máscara cai. Tenha coragem e tome o antídoto. Afaste-se do que não está de acordo com os seus princípios. É um exercício de desapago e de fidelidade às suas convicções. Se a discórdia começar a se disseminar no seu grupo ou as pessoas tentarem usá-lo como porta-voz daquilo que elas mesmas não têm coragem de dizer, desconfie. Se você não leu Shakespeare nem viu alguma de suas peças, O Rei Leão basta como inspiração.
O filme vai chegando ao fim, depois de mais de duas horas, e aquelas elucubrações estão todas fervilhando na minha cabeça. Ouço alguns soluços e algumas risadas espalhados pelas poltronas do cinema. Acredito que a maior parte do público estivesse ali para o entretenimento puro que a Disney sempre nos proporciona. Enquanto isso, fiquei feliz de ter usado a despretensiosa noite de terça-feira para fazer uma análise da minha experiência como empresário, enquanto via leões, girafas, antílopes e hienas na tela. Foi uma poderosa sessão de terapia que eu talvez não conseguisse no consultório. Aqueles personagens me ajudaram a projetar rostos humanos em cada um deles e sair do cinema com minhas convicções amplificadas. A principal delas é de que a generosidade será a maior virtude do líder contemporâneo. A outra é de que não importa quanta coragem exija de nós, devemos nos afastar dos lacaios para preservar nossa sanidade e nossos princípios. Mufasa não pode conviver no reino de Scar, sob pena de matar os sonhos de pequenos Simbas que confiem na sua liderança. E a morte do sonho é a morte da verdadeira fagulha que nos impulsiona para a felicidade e para o sucesso.